Desafios complexos exigem esforços interdisciplinares

Fotografia de diversos homens construindo uma casa com ripas de madeira.

Em 2015, a ONU elaborou a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, com 17 objetivos visando “erradicar a pobreza, proteger o planeta e garantir que as pessoas alcancem a paz e a prosperidade” (Desa, 2016). A iniciativa surgiu em resposta à urgência na solução de graves problemas sociais e ambientais em todo o mundo, como o aumento da desigualdade socioeconômica, da discriminação de gênero, de conflitos e guerras, do aumento no fluxo de refugiados e das tragédias climáticas. Muitas das soluções sugeridas para esses problemas têm por base a elaboração de políticas sociais que garantam o estabelecimento e a manutenção das metas apresentadas na Agenda 2030. Para esse fim, é relevante a criação de políticas efetivas, suportadas por modelos científicos que expliquem os diversos fenômenos associados aos problemas apontados. A relevância da ciência para solucionar problemas sociais pôde ser exemplificada na pandemia da COVID-19, que demonstrou como certos comportamentos (ex., disseminação de informações falsas, efeitos de liderança, percepção de risco, etc.) foram relevantes na disseminação e/ou no enfrentamento da pandemia (Van Bavel et al., 2020). O infográfico apresenta uma visão de tópicos tipicamente estudados pelas Ciências Humanas e Sociais que são fundamentais no enfrentamento de problemas como a COVID-19.

Infográfico com visão de tópicos tipicamente estudados pelas Ciências Humanas e Sociais que são fundamentais no enfrentamento de problemas como a COVID-19 (adaptado de Van Bavel et al., 2020).

Dessa forma, é necessário compreender como diferentes características individuais ou de grupo, que dão base à pluralidade das visões de mundo, podem explicar os complexos fenômenos sociais associados aos problemas apontados na Agenda 2030, bem como sugerir a adoção de políticas sociais efetivas. Conforme demonstram evidências encontradas em estudos da Psicologia e das neurociências, diferentes visões de mundo são moduladas por fatores como i. nossas percepções e interpretações do mundo, nem sempre lógicas e racionais (sob efeito de heurísticas, vieses, emoções); ii. crenças e iii. o modo como julgamos moralmente as situações que vivenciamos.

Heurísticas e vieses cognitivos modulam o processamento das informações que recebemos e influenciam nossos comportamentos. Essas formas de pensar podem interferir em decisões individuais, como hesitar viajar de avião por enfática exposição midiática de acidentes aéreos (heurística da disponibilidade) e coletivas, como escolher candidatos a partir de busca seletiva de informações reforçadoras da nossa crença (viés de confirmação), ou acreditar mais facilmente que o discurso de um candidato é lógico, por alinhar-se à nossa crença (viés de crença). Crenças, per se, influenciam comportamentos, mas não necessariamente de modo negativo. Muitas instituições, por exemplo, se pautam em crenças religiosas específicas e, com trabalhos voluntários, ajudam populações carentes. Quando, porém, as crenças se baseiam em informações inverídicas ou tendenciosas, causam problemas de ordem maior, como crise sanitária (movimento antivacina) e perturbação do cenário político. Em eleições recentes, por exemplo, a disseminação de desinformação protagonizada pelas redes sociais, reforçando crenças em conspirações e notícias falsas, teve influência direta nos resultados eleitorais (Allcott & Gentzkow, 2017).

Além dos vieses citados, também somos suscetíveis àqueles inerentes a situações sociais, como preferência pelos grupos aos quais pertencemos (endogrupo). Estudos sobre o impacto cotidiano de vieses indicam o favorecimento ao endogrupo como modulador de como percebemos as emoções das pessoas ao nosso redor: atribuímos mais emoções complexas (ex., compaixão, vergonha, orgulho), tipicamente humanas por requererem cognição superior, a pessoas do endogrupo do que de grupos externos (exogrupo). Não atribuir tais emoções a um grupo pode levar à sua desumanização (Leyens et al., 2000; Leyens et al., 2001), enquanto preferir o próprio grupo pode predizer confiança e empatia para os membros do endogrupo, e estereótipo e discriminação para membros externos (Hewstone, Rubin, & Willis, 2002), como no caso do viés racial. Considerada a diversidade das sociedades, fica evidente a importância de estudar fatores relacionados a esses vieses, para compreender problemas sociais como preconceito, discriminação e marginalização de minorias.

Agir em sociedade exige a percepção e comparação de situações e valores (Malle, 2021), que culminam em julgamentos morais, i.e., fenômenos de alta ordem influenciados pela interação entre fatores individuais (idade, gênero, raça, emoções (Mulvey, Gönültaş, & Richardson, 2020; Atari, Lai, & Dehghani, 2020; Brewer, 2017; Hester & Gray, 2020)), sociais (pertencimento a grupos, ideologia política (Rosenfeld & Tomiyama, 2021)) e contextuais (atores situacionais, como quem julga, é julgado e foi vítima; intenção do agente; consequências à vítima (Nobes, Panagiotaki, & Engelhardt, 2017; Tsoi et al., 2018)). Um exemplo de interação entre esses níveis acontece na associação entre o grau de conservadorismo e a sensibilidade ao nojo: pessoas politicamente conservadoras sob reavaliação emocional para atenuar o nojo reportaram também níveis atenuados de reprovação moral ao beijo entre dois homens e ao casamento entre pessoas do mesmo sexo (Feinberg et al., 2014).

A compreensão dos temas apresentados anteriormente, junto à detecção e ao mapeamento das relações entre eles, torna possível testar intervenções comportamentais que aproximem pessoas e grupos, e fomentem comportamentos pró-sociais, em especial os cooperativos, cruciais para desenvolver sociedades sustentáveis e justas. Pensando em contribuir com principal objetivo da Agenda 2030 da ONU, em especial com as metas de igualdade de gênero, ação sobre mudanças climáticas, paz, justiça e fortalecimento de instituições, o INCT-SANI pretende ampliar as fronteiras do conhecimento científico sobre os processos afetivos, morais e sociais subjacentes aos fenômenos relacionados a tais metas, como cooperação, tomada de decisão social, julgamento moral, vieses implícitos e explícitos, crença em teorias conspiratórias e fake news.

Referências

Allcott, H., & Gentzkow, M. (2017). Social media and fake news in the 2016 election. Journal of economic perspectives, 31(2), 211-36. https://doi.org/10.1257/jep.31.2.211

Atari, M., Lai, M. H., & Dehghani, M. (2020). Sex differences in moral judgements across 67 countries. Proceedings of the Royal Society B, 287(1937), 20201201. https://doi.org/10.1098/rspb.2020.1201

Brewer, M. B. (2017). Intergroup discrimination: Ingroup love or outgroup hate? In C. G. Sibley & F. K. Barlow (Eds.), The Cambridge handbook of the psychology of prejudice (pp. 90–110). Cambridge University Press. https://psycnet.apa.org/doi/10.1017/9781316161579.005

Desa, U. N. (2016). Transforming our world: The 2030 agenda for sustainable development. https://sdgs.un.org/sites/default/files/publications/21252030%20Agenda%20for%20Sustainable%20Development%20web.pdf

Feinberg, M., Antonenko, O., Willer, R., Horberg, E. J., & John, O. P. (2014). Gut check: Reappraisal of disgust helps explain liberal–conservative differences on issues of purity. Emotion, 14(3), 513. https://doi.org/10.1037/a0033727

Hester, N., & Gray, K. (2020). The moral psychology of raceless, genderless strangers. Perspectives on Psychological Science, 15(2), 216-230. https://doi.org/10.1177/1745691619885840

Hewstone, M., Rubin, M., & Willis, H. (2002). Intergroup bias. Annual review of psychology, 53(1), 575-604. https://doi.org/10.1146/annurev.psych.53.100901.135109

Leyens, J. P., Paladino, P. M., Rodriguez-Torres, R., Vaes, J., Demoulin, S., Rodriguez-Perez, A., & Gaunt, R. (2000). The emotional side of prejudice: The attribution of secondary emotions to ingroups and outgroups. Personality and social psychology review, 4(2), 186-197. https://doi.org/10.1207%2FS15327957PSPR0402_06

Leyens, J. P., Rodriguez‐Perez, A., Rodriguez‐Torres, R., Gaunt, R., Paladino, M. P., Vaes, J., & Demoulin, S. (2001). Psychological essentialism and the differential attribution of uniquely human emotions to ingroups and outgroups. European Journal of Social Psychology, 31(4), 395-411. https://doi.org/10.1002/ejsp.50

Malle, B. F. (2021). Moral judgments. Annual Review of Psychology, 72(1), 293-318. https://doi.org/10.1146/annurev-psych-072220-104358

Mulvey, K. L., Gönültaş, S., & Richardson, C. B. (2020). Who is to blame? Children's and adults' moral judgments regarding victim and transgressor negligence. Cognitive science, 44(4), e12833. https://doi.org/10.1111/cogs.12833

Nobes, G., Panagiotaki, G., & Engelhardt, P. E. (2017). The development of intention-based morality: The influence of intention salience and recency, negligence, and outcome on children’s and adults’ judgments. Developmental Psychology, 53(10), 1895. https://psycnet.apa.org/doi/10.1037/dev0000380

Rosenfeld, D. L., & Tomiyama, A. J. (2022). Moral judgments of COVID-19 social distancing violations: The roles of perceived harm and impurity. Personality and Social Psychology Bulletin, 48(5), 766-781. https://doi.org/10.1177/01461672211025433

Tsoi, L., Dungan, J. A., Chakroff, A., & Young, L. L. (2018). Neural substrates for moral judgments of psychological versus physical harm. Social cognitive and affective neuroscience, 13(5), 460-470. https://doi.org/10.1093/scan/nsy029

Van Bavel, J. J., Baicker, K., Boggio, P. S., Capraro, V., Cichocka, A., Cikara, M., ... & Willer, R. (2020). Using social and behavioural science to support COVID-19 pandemic response. Nature human behaviour, 4(5), 460-471. https://doi.org/10.1038/s41562-020-0884-z

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